Cronicamente iguais, desesperadamente únicos
Tentando desenvolver anticorpos contra a padronização digital (e falhando no meio do processo!)
Quando foi a última vez que você teve um pensamento genuinamente seu? Não uma variação de algo que viu online, não uma resposta a um estímulo algorítmico, mas algo que brotou das profundezas da sua própria consciência. A coragem de formar uma opinião antes de verificar se ela é aceitável online está se tornando uma virtude cada vez mais rara e revolucionária.
Parece que estamos vivendo um momento que só consigo descrever como uma apatia latente. Não é exatamente uma mudança de paradigma, mas algo mais sutil e insidioso. Uma sensação que se instala lentamente, como um vírus sem sintomas aparentes, até que só percebemos quando já comprometeu todo o organismo.
De repente, todo mundo parece falar as mesmas palavras, do mesmo jeito, ao mesmo tempo. As expressões se espalham como contágio, atravessando fronteiras com velocidade assustadora. Ontem era “vibe”, hoje é “aesthetic”, amanhã será outra palavra que, em questão de dias, estará na boca de todos, de adolescentes a CEOs, de influenciadores a seus pais.
E não são só nossos amigos, são nossos colegas de trabalho, as marcas onde compramos, as figuras públicas que admiramos, todos mergulhados na cultura digital até o ponto da saturação.
Quero deixar claro que não quero ser a voz politicamente correta que condena a cultura digital, enquanto secretamente participa dela. Afinal, eu mesma já fui a primeira a usar “é sobre isso” depois de qualquer reflexão banal, e já mudei de opinião sobre algo só porque vi um vídeo de 15 segundos no TikTok e muitos outros aspectos que fazem de mim uma pessoa cronicamente online, afinal estou mesmo on e seria hipocrisia pura fingir uma superioridade moral que não tenho.
Fiz um experimento pessoal na semana passada, comprei alguns livros apenas pelo meu instinto, sem ver resenhas online antes e foi surpreendentemente difícil!!!! Percebi que tinha perdido a confiança na minha capacidade de julgar o valor de algo sem a validação prévia de estranhos na internet. Três livros que nunca teriam sido recomendados pelo meu algoritmo, e a leitura deles mudou profundamente minha perspectiva, um em especial, que me inspirou a escrever o texto.
A internet criou um vocabulário compartilhado global que transcende fronteiras. Hashtags se transformam em verbos, memes em adjetivos, e tweets em manifestos culturais. O resultado é uma língua franca da internet que todos aprendemos sem perceber que estamos sendo ensinados.
O mais perturbador é como essa homogeneização linguística se infiltrou em todos os aspectos da vida contemporânea. Marcas que antes tinham vozes distintas agora compartilham o mesmo tom casual-irônico. Até instituições tradicionalmente formais adotaram essa linguagem para parecerem relevantes.
Não é apenas que estamos usando os mesmos dispositivos para nos comunicar, mas que os próprios dispositivos estão moldando nossa comunicação. A interface se tornou a mensagem. Os limites de caracteres, os formatos de vídeo, os algoritmos, todos esses elementos técnicos estão silenciosamente esculpindo nossa expressão.
O resultado é uma estranha contradição: nunca tivemos tantas plataformas para expressão individual, e ainda assim, nunca parecemos tão homogêneos.
Reclamar da falta de pensamento original é, ironicamente, um pensamento nada original. Reconheço a contradição inerente ao escrever esse texto. Estou usando palavras para criticar como todos usamos as mesmas palavras. Estou publicando na internet para lamentar os efeitos da internet.
Décadas antes das redes sociais, Guy Debord já previa como a vida social seria mediada por representações, criando uma realidade onde a autenticidade é substituída por sua representação. Ele escreveu: “Tudo o que era vivido diretamente se tornou uma representação.” Hoje, essa profecia se realiza de maneiras que nem mesmo Debord poderia imaginar.
Pesquisas demonstram que algoritmos de recomendação podem reduzir a diversidade de conteúdo consumido em até 40% ao longo do tempo, criando o que Eli Pariser chamou de “filtros bolha”. Quando somos constantemente expostos a ideias similares às nossas, nossa capacidade de pensar independentemente é comprometida.
Desenvolver “bom” gosto exige coragem, e também tentativa e erro. Precisamos nos submeter a uma espécie de terapia de rejeição, estar dispostos a errar (e ter mau gosto, e parecer ridículos) para descobrir o que realmente gostamos.
Essa terapia é particularmente difícil na era das redes sociais, onde cada escolha está sujeita a julgamento instantâneo. O medo do ridículo nunca foi tão agudo quanto agora, quando um momento de mau gosto pode ser eternizado em capturas de tela. Não é de admirar que tantos de nós optemos pelo caminho seguro, aderindo às tendências estabelecidas.
No entanto, é precisamente esse risco que permite o desenvolvimento de um gosto verdadeiramente pessoal. Como podemos saber do que realmente gostamos se nunca nos permitimos gostar de algo impopular? Como podemos desenvolver discernimento se sempre terceirizamos nossas decisões para o consenso coletivo?
A relação entre consumo de conteúdo e formação de identidade nunca foi tão evidente. Somos, em grande medida, o que consumimos. Se esse conteúdo é homogêneo, algoritmicamente curado para maximizar nosso engajamento em vez de nosso crescimento, como podemos esperar desenvolver identidades distintas?
O primeiro passo talvez seja uma reevaliação consciente de nossas dietas de mídia. Assim como nos preocupamos com o que colocamos em nossos corpos, deveríamos nos preocupar com o que colocamos em nossas mentes. Nossa dieta informacional determina nossa saúde mental tanto quanto nossa dieta física determina nossa saúde corporal.
O cultivo do discernimento requer prática deliberada. Precisamos questionar não apenas o conteúdo que consumimos, mas também nossas próprias reações a ele. Por que gostamos do que gostamos? Por que rejeitamos o que rejeitamos? Essas preferências são realmente nossas, ou foram implantadas em nós por algoritmos e pressão social?
Os algoritmos que moldam nossa experiência online não são neutros. Eles são projetados para maximizar o engajamento, não a diversidade de pensamento. Quanto mais tempo passamos sob sua influência, mais nossas mentes são recalibradas para pensar dentro dos parâmetros que geram mais cliques, mais curtidas, mais compartilhamentos.
O mais perturbador talvez seja como essa homogeneização se disfarça de individualidade. As redes sociais nos vendem a ilusão de expressão pessoal enquanto nos empurram para canais cada vez mais estreitos de conformidade. Escolhemos entre opções pré-determinadas e chamamos isso de liberdade. Repetimos frases feitas e chamamos isso de opinião.
Não acredito que devamos abandonar a internet ou rejeitar completamente a cultura digital. O desafio não é só escapar da internet, mas aprender a usá-la de maneiras que ampliem, em vez de diminuir, nossa humanidade. Nessas pausas, nesses pequenos espaços de silêncio e reflexão, talvez possamos começar a redescobrir nossas próprias vozes.
Enquanto escrevo estas palavras, estou dolorosamente consciente da ironia, uso a internet para criticar a internet, emprego palavras para questionar como as palavras estão sendo esvaziadas. Mas talvez seja precisamente nessas contradições que encontremos o caminho adiante. Não podemos escapar da água digital em que nadamos, mas podemos aprender a nadar contra a corrente, a criar pequenos redemoinhos de autenticidade.
A internet não apenas conectou mentes diferentes, ela está ativamente as homogeneizando, como um grande liquidificador cultural global.
Talvez a verdadeira revolução viria de milhões de pequenas revoluções internas, de momentos de questionamento, de escolhas conscientes para preservar o que nos torna genuinamente humanos: nossa capacidade de surpresa, curiosidade, vulnerabilidade ao erro, nossa imperfeita e preciosa singularidade.
ontem mesmo vi um vídeo de uma pessoa reclamando como antigamente mudava theme no tumblr, mexia com HTML, tinha blogs monetizados e mais várias coisas e hoje era "burra". um comentário específico me pegou, que falava que antigamente fazíamos essas coisas pela diversão do processo, não atras de um resultado ideal... e é a verdade mesmo
Acredito que estar consciente disso é um passo crucial, sabe aqueles estereótipos do cara cult que se acha muito importante porque lê Buskowski? Não tem como a gente se desprender da cultura, inclusive da cultura de massa, agora disseminada pela internet, como não tem como nos desfazer de hábitos arraigados. Um texto como o seu, porém, já ajuda a promover um pensamento crítico. Será que não tô muito nessa minha bolha? Nesses conteúdos similares de gente parecida comigo? Nesse nicho? Enfim, pensamento crítico é combustível pra alguma atitude. Parabéns pelo texto. :)